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Classificação financeira de precatórios é desafio que não comporta paixões
Em meio aos debates atuais encampados pelo Ministério da Fazenda, uma questão persiste sem uma resposta definitiva: a classificação dos precatórios como despesas primárias ou como despesas financeiras
23/11/2023 15:11
Por Pedro Paulo Corino da Fonseca*
Em meio aos debates atuais encampados pelo Ministério da Fazenda, uma questão persiste sem uma resposta definitiva: a classificação dos precatórios como despesas primárias ou como despesas financeiras.
Não é exagero dizer que esta controvérsia habita hoje o centro de uma das maiores discussões jurídicas pendentes de definição pelo Supremo Tribunal Federal (STF): a constitucionalidade do sub-teto fiscal para pagamento de precatórios instituído pela Emenda Constitucional 114/21, e questionado por meio das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7.047 e 7.064, movidas, respectivamente, pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) e pelo Conselho Federal da OAB.
Antes de prosseguir, convém relembrar que, sob a perspectiva legal, e dentre diversas outras definições possíveis, precatórios consistem na orçamentalidade da condenação judicial definitiva de entes públicos, ou seja, trata-se do “número de inscrição” cronológico de uma dívida judicial no orçamento da União Federal, Estados e Municípios. Já sob a perspectiva das Finanças Públicas, eis que surge a celeuma.
Como não poderia deixar de ser, o registro e o pagamento de condenações judiciais varia de país para país, conforme as respectivas legislações orçamentárias e práticas contábeis. Em todos os casos, contudo, a transparência e adequada previsão orçamentária é primordial, sendo certo que a contabilidade cuida de refletir a imagem fiel das obrigações do Estado e das contas públicas de um modo geral.
Em adição, é evidente que a harmonização das práticas contábeis internacionais, especialmente por meio da implementação de padrões como os da International Public Sector Accounting Standards Board (IPSASB), caminha a passos largos, justamente com o objetivo de proporcionar ainda mais transparência, bem como uma maior comparabilidade e consistência nas finanças públicas globais. Nos Estados Unidos, por exemplo, as condenações judiciais contra o Governo Federal são pagas com recursos provenientes de um fundo especial denominado Judgment Fund, que consiste em um mecanismo permanente para o pagamento de sentenças judiciais e acordos administrativos (como no caso da conciliação prévia ao ajuizamento de ações judiciais).
Nos países que integram a União Europeia, por sua vez, também se observa, em grande parte, os padrões do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais (SEC), sendo as condenações judiciais, em princípio, registradas como parte das despesas do governo no momento judicial em que a obrigação se torna conhecida e quantificável, seguindo uma espécie de “princípio da competência”.
Já por aqui, em território verde e amarelo, a classificação financeira dos precatórios foi “agitada” pela manifestação apresentada pela Advocacia-Geral da União (AGU) no âmbito das já citadas ADIs 7.047 e 7.064, e fundamentada com base em nota técnica do ministério da Fazenda, por meio da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).
De uma forma bastante sucinta, a AGU pleiteou que o STF autorize a abertura de crédito extraordinário para quitação dos precatórios pendentes de pagamento mediante a distinção e a segregação dos valores encartados nesses títulos em principal, a serem caracterizados como despesas primárias, e encargos financeiros decorrentes da incidência de correção monetária e de juros, a serem caracterizados como despesas financeiras.
Aqui, é necessário explicar brevemente a diferença entre as referidas rubricas orçamentarias.
Despesas primárias são todos e quaisquer gastos realizados pelo governo com o objetivo de para prover bens e serviços públicos à população, inclusive aqueles destinados à manutenção da máquina pública. Já as despesas financeiras, também denominadas de "despesas não primárias" proveem do cumprimento de obrigações do governo com o pagamento de suas dívidas.
A vantagem de se classificar parte dos débitos de precatórios como despesas financeiras, como pleiteado pela AGU, reside no fato de que, como despesas financeiras, os respectivos valores não se encontram sujeitos ao limite de resultado primário previsto no novo regime fiscal, exatamente como ocorre com os encargos sobre os títulos da dívida pública.
Ora, as condenações judiciais da União Federal, ou seja, os precatórios, representam um compromisso legal oriundo do reconhecimento judicial definitivo de um débito da Fazenda Pública, com características diversas e genericamente semelhantes às despesas de capital.
A complexidade aumenta, porém, quando observamos que os débitos de precatórios incluem a correção monetária e os juros incidentes sobre o principal da condenação, sendo certo que tais valores compõem a maior parte dos precatórios, o que poderia sugerir uma similaridade ainda maior com as despesas financeiras.
Nesse contexto, igualmente, a jurisprudência do Judiciário e dos Tribunais de Contas não tem oferecido um direcionamento específico que pudesse categorizar os precatórios como despesas primárias ou secundárias, tratando-os como obrigações legais do Estado sem maiores distinções. A falta de uma diretriz legal ou de um regulamento específico que enquadre os precatórios em uma dessas categorias evidencia que a prática orçamentária atual não está consolidada.
Os precatórios não são despesas discricionárias do governo, mas consequência de processos judiciais que obrigatoriamente devem ser pagos dentro do período de “graça constitucional”. Como não poderia deixar de ser, estas despesas somente passam a integrar o orçamento público após o trânsito em julgado, conforme prevê o parágrafo 5º, do artigo 100 da Constituição Federal: “É obrigatória a inclusão no orçamento das entidades de direito público de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado constantes de precatórios judiciários apresentados até 2 de abril, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente”.
Trata-se da única regra expressa, que pode e deve ser utilizada para fins dos parâmetros orçamentário, financeiro e contábil relacionados diretamente aos precatórios, que, por se tratar de matéria constitucional, sobrepõe qualquer outro regramento legal, financeiro ou contábil. Ao estabelecer a orçamentalidade obrigatória apenas após a apresentação das “sentenças transitadas em julgado”, o referido dispositivo constitucional procede a uma relevante distinção entre a dívida judicial, do fato jurídico que a originou, e a dívida jurídico-financeira: visto que surge no Direito no momento da inscrição em orçamento da condenação judicial da União.
Não bastasse a distinção expressa e constitucional, os precatórios são orçamentalizados para pagamento posterior, acrescidos de correção monetária e juros – valores esses que, geralmente, são bem superiores aos valores originários, devendo-se, também por esse motivo, reconhecer a dívida sob o aspecto financeiro.
Dessa forma, por reverência às normas, aos compromissos financeiros e principalmente à transparência, uma conclusão válida consiste no entendimento de que os valores correspondentes à correção monetária e aos juros que integram os precatórios, de fato, não devem ser caracterizados como despesas primárias, mas sim como despesas financeiras.
Diante da real possibilidade de segregação do principal e dos encargos financeiros para fins de classificação dos débitos de precatórios como despesas primárias e financeiras, respectivamente, ecoaram vozes para condenar o movimento, resgatando, inclusive, a terminologia das “pedaladas fiscais”.
Fato é que, caso o STF venha a acolher o pleito da AGU, decidindo nesse sentido classificatório, com a autorização para a abertura de crédito extraordinário, pouco importará o tom e o teor dessas “vozes”, pois, a Suprema Corte terá exercido o seu papel de intérprete verdadeiro.
Assim sendo, em respeito aos argumentos legalistas em sentido contrário, e principalmente àqueles que só querem — e merecem — receber o que lhes é devido pelo Estado, evidencia-se que a ausência de uma classificação específica na legislação torna legítima uma discussão despida de paixões, e que assegure dentro dos princípios contábeis, um controle internacional do pagamento dos precatórios, de forma transparente, seja por meio da promulgação de novas leis ou pela interpretação do arcabouço jurídico existente que esclareça, de forma definitiva, a posição dos precatórios no contexto financeiro. Erros interpretativos do passado não devem motivar a permanência do erro em razão da preservação histórica da contabilidade pública. Com a palavra, o Supremo Tribunal Federal.
*Pedro Paulo Corino da Fonseca é advogado, mestre pela PUC-SP, sócio do Corino Advogados e CEO da Sociedade SP de Investimentos.
Imagem: Piqsels
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